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Critica| De Volta ao Mar (The Outrun) - 2024 (Reino Unido/Alemanha)

“Se você enlouquece em Orkney, eles te levam embora ”

“Não sei ser feliz sóbria”



Disponível na HBOMax



Crédito divulgação
Cartaz

The Outrun em tradução literal pode significar “a ultrapassagem” e, a depender do contexto cabem ainda fugir, superar, correr mais rápido, dobrar, escapar. Não sei se gostei da tradução que deram ao título em português, racionalmente não sei explicar porque da minha implicância. Mas, fato é que, tanto o título em português, quanto os verbos que listei cabem nessa estória lindamente interpretada pela Saoirse Ronan (nunca aprenderei a pronúncia deste nome…) e cujo filme, acredito, muito subestimado.


Saoirse interpreta Rona (quase seu próprio sobrenome), uma bióloga nascida e criada nas Ilhas Orkney, e será na sua fase alcoolista que vamos acompanhar sua vida. Esse simplório resumo da estória nos traz a sensação de que “esse filme eu já vi”, mas o pulo do gato é justamente a forma como ela é narrada.


Aparentemente não há nada de novo em mais uma estória sobre a luta contra o alcoolismo e seus demônios, a não ser por detalhes bastante criativos e instigantes que a direção de Nora Fingseheidt nos proporciona. Essa diretora alemã dirigiu em 2019, Transtorno Explosivo (System Crasher, filme excelente) e em 2021 o filme Imperdoável (The Unforgivable, muito fraco), e comparando esses dois filmes com The Outrun o ponto de convergência entre eles é o protagonismo feminino de personagens fora da curva, isoladas por uma sociedade deveras preconceituosa: uma criança de nove anos absurdamente irascível que passa por inúmeros abrigos, uma ex-presidiária em busca da irmã e, enfim, nossa Rona.


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Rona

O menu de situações deprimentes e angustiantes é farto: infinitas bebedeiras em pubs, garrafas escondidas pela casa, choro, agressão, arrependimento, esquecimento, perda de amores. O filme ainda mostra como ser mulher é mais um agravante para o alcoolismo, já que os riscos de sofrer violência sexual e de gênero são enormes. O notável da direção e da câmera de Yunus Roy Imer é que nunca seguimos pela via do julgamento. A câmera ora muito perto de Rona, ora em planos abertos mostrando-a cercada de mar, nos faz perceber que estamos diante de uma garota que merece uma chance. Nada mais tocante do que o silêncio de Rona quando, no fundo do poço, a assistente social pergunta se há alguém com doença mental na família. O que menos interessa aqui é a resposta, mas o olhar vazio e perdido, a imensa dor que ela carrega.

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Rona fase laranja

Importante lembrar que o filme é baseado na história real da escritora Amy Liptrop, que por uma fração de segundos, aparece ao final do filme.

O roteiro (Amy Liptrot, Nora Fingseheidt e Daisy Lewis) através da montagem de Stephen Bechinger (tambem roteirista em Transtorno Explosivo) nos conduz numa narrativa fragmentada, não linear, tornando o presente indecifrável, o que pode causar confusão no início. Mas, as peças logo se juntam através de pistas como, a evolução das cores do cabelo do Rona e dos espaços nas quais a protagonista se encontra, se movimentando entre a urbanidade de Londres e o mundo selvagem das ilhas.


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Rona e a mãe Annie

Passado, passado recente e presente se fundem em belíssimas cenas e enquadramentos que conferem a lindeza e a violência do mar bravio e das tempestades nas ilhas e, em paralelo aos piores momento de Rona sob a influência da bebida.


Não há demonização da personagem e nem de sua família que ainda habita o arquipélago. Annie (Saskia Reeves, Slow Horses) sua mãe, que com todos os sofrimentos vividos no casamento e após a separação se volta à religiosidade; Andrew (Stephen Dilane, Game Of Thrones) o pai diagnosticado com bipolaridade, acaba servindo de gatilho para a filha em vários momentos e mesmo assim, esta, está quase sempre ao lado do pai, principalmente após suas crises (um dos pequenos detalhes que nos faz empatizar com a protagonista). É muito interessante perceber que quando voltamos à infância de Rona, durante as crises do pai a câmera nunca mostra seu rosto, afinal, qual é a identidade de um pai numa crise maníaca para uma garota de poucos anos?


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Andrew, pai de Rona

Também não se romantiza o alcoolismo de Rona, que percorre inúmeros grupos de ajuda sem sucesso (seja lá o que isso for). A bandeira da superação ou força de vontade nunca é agitada. Há momentos em que fica praticamente impossível de saber o que é mais doloroso, o próprio vício ou o seu enfrentamento. Muitas produções discutem o alcoolismo na chave da falta de esforço para mudar ou que, querer é poder, com discursos fáceis e cínicos. Isso não acontece aqui, o que potencializa a narrativa. Como diria Freud, não somos senhores da nossa própria casa como supomos ser, e esse tal de inconsciente que nos leva muitas vezes a realizar coisas que nos fazem mal, é um labirinto cheio de incógnitas.


Uma escolha do roteiro em relação aos flashbacks me pareceu bastante eficaz, apesar de não ser algo novo. Nas cenas em que o passado boêmio de Rona e seus desdobramentos devido à bebida nos é apresentado, estes são fruto dos momentos de profunda reflexão da protagonista. Essas lembranças terminam em planos próximos ou relativamente próximos ao seu rosto, onde é possível sentir toda a dor, arrependimento e vergonha da protagonista. São nos momentos de profundo silêncio, mas com um olhar grita, e grita muito, que vemos todo o talento de Saoirse.


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Uma transição de cenas em particular me encantou bastante, fruto da montagem eficiente: Rona está caminhando pelo monumento de pedras neolíticas, e aos poucos, o silêncio e a escuridão da noite nos transportam para uma casa noturna em Londres onde vemos Daynin (Paapa Essiedu, I May Destroy You), seu ex-namorado dançando. Aqui, o designer de som é sensacional, passando do silêncio quase absoluto para uma música eletrônica de forma orgânica, além do uso de flashes de luz que já nos prepara para a cena que virá.


Rona sempre flerta com o fundo do poço, mas essa descida nunca é linear, e a cada volta, somos rasgados junto com a personagem. Para uma jovem entusiasta da vida na cidade grande com suas seduções, dividindo a vida com um amor, Daynin, voltar às Ilhas Orkney, pode ser um sinal de completo fracasso.


Entretanto é no isolamento das ilhas e mais a frente no isolamento do isolamento, que as coisas enfim podem mudar. Em determinado momento morar com a mãe, visitar o pai, suportar o olhar dos vizinhos ou mesmo no trabalho na ONG na qual ela terá que lidar com a comunidade, não são mais suficientes para se tratar. A radicalização pode ser a única saída.


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F*** -se


Rona vai continuar seu trabalho na RSPB (onde monitora o avistamento do condonizão, ave em risco de extinção), mas se mudará pra uma ilha mais isolada do arquipélago Orkney, indo viver por meses na ilha Papa Westray, numa casa de apoio da entidade, em meio ao frio extremo, tempestades e solidão. Não seria exagero dizer que apesar da solidão, a presença de Calum (Martin Gray) dono da provavelmente única mercearia na ilha e, ele mesmo, um alcoolista em tratamento, tenha reflexos positivos na vida de Rona. Os poucos diálogos entre os dois são muito pungentes e de uma gentileza e sinceridade tocantes, mas sempre com um pé fincado na realidade dolorida das pessoas que se encontram nessa condição. E a realidade dessas pessoas é tão dura que parece não haver diferença entre 4 meses ou 12 anos de abstinência. Com o passar do tempo não fica mais fácil, só menos difícil.


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Na natureza selvagem

The Outrun é um filme que pode acender gatilhos para quem sofre de alcoolismo ou que tenha amores (qualquer tipo de amor) que sofrem com a doença. Narrativa forte sem concessões, mas que dosa a fúria e a beleza dessas pessoas, assim como há fúria e beleza na natureza que insiste em não se domesticar por nós (nem todo o ser humano, mas sempre um ser humano). E nada como dar aquele grito que termina num largo sorriso junto com Rona ao final do filme.


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Amy Liptrot












Curiosidades: Primeira vez que um filme foi realizado na ilha de Papa Westray, perto de Orkney, na Escócia. Em 2011 tinha 90 habitantes. A ONG RSPD existe e seu perfil é @rspb.

As Ilhas Órcades (Orkney) são famosas pelos seus monumentos de pedra neolíticos, que fazem parte do Patrimônio Mundial da UNESCO "Coração do Neolítico de Órcades" .

Como o filme é baseado na autobiografia de Amy Liptrot, a cabana de observação de pássaros realmente existe e pode ser encontrada no Google Maps.

Saoirse Ronan e Jack Lowden (da série Slow Horses e esposo de Saoirse) criaram especificamente a produtora Arcade Pictures (junto com Dominic Norris) para produzir este filme, mas se retiraram depois que ele foi feito.

Quando Greta Gerwig estava filmando Barbie (2023), Saoirse interpretaria uma das Barbies Estranhas ao lado de Kate McKinnon, mas devido a conflitos de agenda com De Volta ao Mar (2024), ela não pôde participar do filme da Barbie.

Como sou uma implicante nata com a tradução dos títulos fui descobrir quem as faz (talvez eu seja a única que não sabia disso, nunca fui atrás) e descobri que são os departamentos de marketing das distribuidoras e não os tradutores dos diálogos dos filmes.

Para quem quiser assistir os outros filmes da diretora citados na crítica: Transtorno Explosivo está na Apple TV e Imperdoável na Netflix.












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