12ª Mostra de Cinema de São Miguel do Gostoso-RN- Um não tão breve relato – Parte I
- Pê Dias
- há 15 horas
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De 20 a 24 de novembro de 2025
Um não tão breve relato – Parte I

A primeira vez que ouvi falar neste festival de cinema que rola nas areias de praia de Maceió, foi em 2023, na ocasião da 10ª edição e, de lá pra cá, fervilhei de curiosidade sobre essa mostra tão sui generis. Não sem algum traço de culpa ― como assim uma amante do cinema não conhece esse festival ― mas, lembrando que estamos na era do excesso de informação e não vamos dar conta de saber tudo, relaxei e fui curtir a décima segunda edição.
De onde moro é uma verdadeira saga chegar ao destino, contudo o resultado foi de valer muita a pena, com gostinho de quero mais e vontade de espalhar a palavra.

A mostra é totalmente gratuita e movimenta economicamente a cidade que já é turística, oportuniza cultura para os moradores e porque não, forasteiras como eu. E sim, os moradores frequentam e assistem os filmes, não é algo para “inglês” ver. A programação é inteiramente composta por filmes nacionais, valorizando assim o nosso cinema, mas há boatos que no futuro haverá filmes internacionais também. Em 2025 a mostra através da lei estadual n° 12.299/25 se transformou em Patrimônio Cultural, Turístico e Imaterial do Rio Grande do Norte, ou seja, o festival agora é política pública, de estado e não de governo.
Na edição deste ano houve recorde de inscrições entre curtas e longas-metragens com mais de mil filmes vindos de 26 estados, e a produção local, que passou a integrar o festival com a criação da Mostra Potiguar, contabilizou mais de oitenta inscrições.

Cheguei dois dias antes do início da mostra, observando a instalação da sala de cinema ao ar livre, e sobre isso, testemunhei o deslumbre tecnológico que estava bem ali na minha frente. Não conheci muitas salas de cinema na minha vida, bem longe disso, mas é de cair o queixo a qualidade de som, a potência da projeção, e a instalação de uma tela de não sei quantos metros que nem se dá ao trabalho de balançar durante as projeções (ao fim das sessões ela é recolhida num sistema de rolamento para não ficar exposta durante o dia). Isso tudo se pensarmos que na praia do Maceió ocorrem ventos constantes e fortes (algumas pequenas tempestades de areia), conhecida por ser ideal para esportes como windsurf e kitesurf, com o mar um tanto revolto, cujo banho tranquilo não existe (hahaha).
São duas estruturas montadas na areia da praia: a Sala ao Ar Livre, com um cercado na altura da cintura com cadeiras de praia, daquelas que praticamente deitam e, cujas sessões se iniciam depois que anoitece (sim, eu cochilei em alguns filmes…). À noite a temperatura cai e levar um agasalho é uma boa ideia. A sensação de ver filmes com as estrelas sobre nossas cabeças é deliciosa.

A outra é a Sala Petrobrás, espaço em formato geodésico próximo à Sala ao Ar livre, refrigerada, com mais limitação de lugares, com projeções à tarde. Faz-se necessário tirar o convite uma hora antes das sessões. A sala carinhosamente chamada de iglu faz jus ao apelido, já que os ares-condicionados funcionam a todo vapor. Aqui também é uma ótima ideia levar um agasalho.


São três mostras: a Competitiva (longas e curtas) na Sala Ao Ar livre, a Panorama (longas e curtas) na Sala Petrobrás e a mostra Potiguar (curtas) na Sala ao Ar Livre.
Não posso esquecer de acrescentar à lista as sessões especiais: na Sala ao Ar Livre tivemos O Agente Secreto de Kleber Mendonça Filho, com a presença da já icônica Dona Tânia Maria e Kaiony Venâncio (pistoleiro Vilmar); na Sala Petrobrás, a sessão Clássicos Restaurados do Cinema Brasileiro com o filme Cinema, Aspirinas e Urubus de Marcelo Gomes que estava prestigiando o festival e participou do seminário “Cinema, Aspirinas e Urubus – Uma Viagem de Alteridade Pelo Sertão”. E No último dia da mostra, após as premiações assistimos à sessão de encerramento com o longa "Dona Onete-Meu Coração neste Pedacinho Aqui", uma bela homenagem a essa figuraça da música brasileira.
Dizem à boca miúda que O Agente Secreto reuniu mais de quatro mil pessoas na praia...dizem. Mas podemos estar diante de apenas uma lenda praieira. Por outro lado, o número de espectadores extrapolou a área da Sala Ao Ar Livre, com inúmeras pessoas e famílias com suas cadeiras próprias de praia espalhadas pelas areias, verdadeiros piqueniques noturnos com sentimento de comunidade.
Outro elemento interessante é a simbiose entre a montagem das salas e a rotina dos moradores, cuja interação rendeu ótimos momentos entre crianças e cachorros, trabalhadores da mostra e pescadores. Nos fins de tarde podíamos contemplar os barcos voltando da pesca e os jovens jogando futebol ao lado desse cinema singular que há doze anos faz parte dessa paisagem.
Durante e entre as sessões há momentos simplórios como as crianças que circulam e brincam de pega-pega entre as cadeiras, além de e cachorros a chafurdar na areia atrás de algum ossinho. Mas calma, essas pequenas fatias de infância não incomodam de forma alguma o espectador, ao contrário do que vemos hoje nas salas “normais” de cinema onde as pessoas se comportam como se estivessem na sala de casa assistindo algum streaming. Porém as brincadeiras não duram muito, as condições do entorno fazem com que a gurizada acabe dormindo lindamente na areia aos pés dos pais. E os “caramelos” também.






A mostra também oferece discussões muito ricas sobre alguns filmes. Presenciei três bate-papos com diretoras(es) de filmes que passaram na noite anterior às conversas. Essas circulavam sobre a luta inglória dos produtores pra conseguir realizar um filme, mesmo um curta, o que demostra a resiliência e amor ao cinema dessa galera. Saí de lá com a ideia de que, mesmo que um filme não me agrade, é preciso respeitar e valorizar todo o esforço que fez aquela obra chegar aos nossos olhos e ouvidos.


Para além dos perrengues, outras conversas eram deliciosas como o relato dos bastidores do filme A Natureza das Coisas Invisíveis, feito pela diretora Rafaela Camelo ou Guto Parente sobre a escolha de sua protagonista da obra Vida e Morte Madalena; ou ainda o relato do jovem realizador Osani sobre sua personagem Pupá. Quando Rafaela Camelo narrou emocionada como caiu a ficha para seus pais sobre a importância e a grandeza do que a filha tinha realizado (foi seu primeiro filme), a plateia se emocionou junto, num dos momentos mais lindos da mostra. Sim, eu chorei.
No último dia houve também o seminário sobre o Cinema Indígena em Deslocamento - não consegui participar :( - com mediação de Mariana Souza, uma benvinda discussão já que testemunhamos a ascensão do cinema indígena, que não se remete apenas à essa temática, mas realizado por eles e com liberdade de produzirem obras sobre qualquer temática.

São Miguel do Gostoso abriga a Galeria Sol da Meia-Noite do jornalista e artista plástico Emanuel Neri, filho da cidade. A galeria fez parte da mostra ao receber o lançamento do livro Por trás Daquele Olhar – Histórias e Descobertas de Emanuel Neri, de Cristina Ramalho. Infelizmente não fui, mas não poderia deixar de fora mencionar esse momento onde cinema, arte e literatura se cruzam. Ah, sim, e tivemos música também com algumas noites encerradas ao som de DJ’s embalando os espectadores entre outros.


Tudo aquilo que presenciei em São Miguel do Gostoso durante a mostra provavelmente atravessou lentes um tanto infantis de encantamento. Aquela criança que sempre vai nos habitar, mas que mesmo assim, com frequência, esquecemos que ainda podemos brincar e nos deslumbrar com as coisas.

Seja pelo tamanho do festival, o calor físico e afetuoso da cidade, a sua concepção, ou tudo junto, a mostra acontece muito perto da gente e assim, foi com deslumbre que presenciei tanta diversidade de pessoas e visões de mundo. Corpos dissidentes, LGBT’s, mulheres negras, homens negros, mulheres cis ou não, dirigindo filmes, atuando neles, fazendo curadoria, gente muito jovem envolvida na organização do evento e fazendo acontecer. Um singelo espetáculo à parte. Um oásis diante de um mundo cada vez mais violento, intolerante, reacionário e hipócrita.

Termino esse relato um tanto-muito-bastante pessoal sugerindo que quem puder dê um pulo nesta mostra maravilhosa, repleta de sol e mar e ótimos filmes. Espero um dia repetir a aventura.


OBS: as fotos do texto são minhas numa pequena ousadia fotográfica e privilegiei ângulos que mostrassem uma rotina de construção da mostra. Fotos mostrando os espectadores nas filas, nas sessões, com fotos belíssimas inclusive, estão no insta da mostra : @mostradecinemadegostoso
Curiosidade: As ilustrações que compõem a identidade visual desse ano contém cenas e elementos remetem à natureza, à imaginação e aos encontros que caracterizam as sessões ao ar livre na praia que são marca registrada da Mostra. Representando de maneira simbólica o dia, a noite e o cinema, a artista propõe uma associação entre a tela do cinema e a arte têxtil, resgatando como o tecido, a tapeçaria e o bordado vêm sendo utilizados para gravarmos e exibirmos nossas histórias através dos séculos. As ilustrações criadas pela artista Elisa Carareto @ecarareto e design gráfico pela dupla Lídia Ganhito @lidia.ganhito e Beatriz Fiel @beatrizpfiel, do Estúdio Pavio @estudio.pavio. Fonte: @mostradecinemadegostoso


