Crítica | Guaxuma – 2018
- Pê Dias
- há 11 horas
- 3 min de leitura
“A gente era livre. Assim que a escola acabava, agente sabia pra onde escapar”
Disponível no Vimeo e You Tube

Animação como categoria cinematográfica é algo que enche meus olhos de “estrelas” apesar de não entender nada sobre sua técnica, e a explicação disso talvez seja porque atinge em cheio meu coração, nosso órgão nada racional. Ao assistir o making of pela primeira vez (o curta já vi umas sete vezes, oito agora) fiquei mais encantada ainda. Em singelos 14 minutos de filme temos um trabalho hercúleo de construção da estória mas, que acredito ser de um prazer imenso ao fazê-lo, ainda mais quando degustamos do resultado final.
A mistura de técnicas (areia, desenho, bonecos) segundo justificativa da diretora Nara Normande, que também assina o roteiro, é que, ao contarmos um sonho ou memória, as imagens que nos veem nem sempre entendemos. Muito provavelmente algo se perde no caminho e/ou preenchemos lacunas.
A estória (ou seria história?) do curta nos conta de maneira poética e melancólica a infância e adolescência de Nara com sua família e amigos e, em especial sua melhor amiga Taira, na praia de Guaxuma em Maceió, cuja narração fica por conta da própria Nara. E mesmo nos momentos de ternura e alegria que toda infância deveria ter, sua narração é cheia de uma melancolia que só torna o filme mais bonito. E nos momentos mais tristes, sem nenhuma condescendência.
A textura um tanto granulada nos remete a uma ininterrupta tempestade de areia, ora suave, ora ameaçadora, e, nesses momentos, a trilha sonora que se vale do som das ondas quebrando na praia e da ventania típica dos litorais acentua ainda mais essa sensação que algo vai acontecer.
Visualmente o curta é um espetáculo criativo: álbum de fotografias a céu aberto, bonecos com os olhinhos mais fofos que já vi, transição de cenas onde um ônibus se transforma num apartamento na cidade, prédios que se curvam ao vento, origamis. Mesmo nas cenas onde é o desenho em si que prevalece, a textura é de areia, mas, neste caso, as cores passam de mais quentes pro azulado.
E como não se surpreender quando a ilustração do amadurecimento físico de Nara e Taira usa de elementos próprios da praia, lugar de soberania total dessas personagens. A rima visual entre o crescimento de pelos nas axilas e o ouriço-do-mar é deliciosa.

Uma cena em especial me chamou a atenção apenas agora, depois de assistir tantas vezes. Quando vemos Nara ir embora para a cidade após a separação dos pais, a paisagem vista pela janela do ônibus é dos canaviais tão típicos de parte do litoral nordestino. Há uma ruptura no cotidiano de Nora ao deixar Guaxuma e o caminho pontuado por canaviais simboliza uma violência social e ambiental, protagonizada por esse tipo de cultura agrícola, cujas consequências ressoam até hoje.
Transformar as perdas ao longo do nosso caminhar na vida em poesia, preenchendo lacunas na nossa memória que podem ser muitos dolorosas é um dos grandes trunfos de Guaxuma. Quem fez isso muito bem foi Tim Burton no seu adorável A Noiva Cadáver (2005), cujas cenas finais semelhantes nos dois filmes, preencheram de amorosidade as minhas próprias lacunas.

Curiosidades: O meu texto foi produzido durante a oficina de Introdução à Crítica de Cinema de curadoria do Kinoarte (@kinoarte) e conduzida por Bruno Carmelo do site de cinema Meio Amargo (@meioamargocine).
Em 2014 Nara Normande junto com Tião realizaram o curta Sem Coração (disponível no Portal Curtas) com produção executiva de Emilie Lesclaux, produtora dos filmes de Kleber Mendonça Filho. Nove anos depois, a dupla transformou a ideia em um longa de mesmo nome disponível na Netflix.
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