Crítica | Late Shift (Heldin) – 2025 (Suíça/Alemanha)
- Pê Dias
- há 4 horas
- 5 min de leitura
“Meu marido gostaria de um quarto privativo. Ele tem plano de saúde? Desculpe, então não pode ter quarto privativo. Se esse homem roncar, o meu marido não conseguirá dormir. Temos bons protetores de ouvido ”
Indisponível por enquanto (inscrição oficial da Suíça para categoria de melhor filme internacional no Oscar 2026)

Passei o filme quase todo acreditando que a estória acontecia num hospital alemão, mas as informações ao final da obra indicam uma crise de enfermeiras (os) sem precedentes na Suíça, algo em torno de um déficit de 30 mil profissionais até 2030. Isso em países ricos e de reconhecido bem-estar social. Nem quero imaginar sobre o que pode acontecer (e acontece) em nossos trópicos.
Algo que também me chamou a atenção é o fato de que, sob o prisma dessa crise na Suíça e também na Alemanha, o filme poderia ter sido encomendado, como uma campanha para chamar atenção dessa situação. Não descobri ao certo sobre isso, mas pouco importa. Essa pequena obra vai mais além, entregando um filme que sim, homenageia esses profissionais, mas com primor técnico, contando uma estória simples e muito humana, com um roteiro enxuto e afiado. No mínimo nos traz a esperança de que o sistema de saúde, seja público ou privado, poderia nos proporcionar um verdadeiro acolhimento em momentos profundamente doloridos e devastadores.
Não sei se ainda é muito cedo pra dizer que a atriz alemã Leonie Benesh é uma grande atriz que vai chegando devagarinho, quase discreta, com ótimas escolhas. Quando vi seu nome no elenco, me enchi de alegria. Descobri sua existência no filme A Sala dos Professores (Das Lehrerzimmer, 2023) e, qual não foi minha surpresa quando descobri também, que ela está no filme A Fita Branca (Das weiße Band - Eine deutsche Kindergeschichte, 2009) de Michael Haneke, praticamente uma adolescente, iniciando a carreira com os mestres.
Esqueçam qualquer referência a séries médicas badaladas como Grey’s Anatomy, House ou a queridinha da vez Pitt. Temos aqui um ambiente hospitalar assim como nas séries, mas o que veremos é um dia de trabalho na vida de Floria Lind (Leonie), a banalidade e a repetição de procedimentos, as pequenas fofocas sobre os colegas, a diversa fauna de pacientes com suas dores e frustrações, enfim, o prosaico.

Esqueçam qualquer referência a séries médicas badaladas como Grey’s Anatomy, House ou a queridinha da vez Pitt. Temos aqui um ambiente hospitalar assim como nas séries, mas o que veremos é um dia de trabalho na vida de Floria Lind (Leonie), a banalidade e a repetição de procedimentos, as pequenas fofocas sobre os colegas, a diversa fauna de pacientes com suas dores e frustrações, enfim, o prosaico.
A cena de abertura mostrando a engrenagem da lavanderia do hospital, com seus uniformes azuis e brancos circulando no alto indica o tom da fotografia: o azul e o branco serão as cores predominantes neste ambiente esterilizado e um tanto rígido.
Em seguida conhecemos Floria, sua chegada ao hospital, a rendição de outro enfermeiro para ela assumir o turno, o contato com a estagiária da vez e a realidade que vai rondar por todo o filme: “só estamos em duas hoje”.

A direção de Petra Biondina Volpe (também roteirista) privilegia uma câmera que não larga de nossa protagonista em momento algum, seja com o uso de planos abertos, fechados ou primeiro plano. A fotografia de Judith Kaufmann e a montagem eficiente (Hansjörg Weißbrich, O Homem Ideal, 2021) estabelecem uma verdadeira dança ao seguir Floria pelos corredores e quartos do hospital: a câmera desliza com a mesma agilidade que os carrinhos de parada que a enfermeira usa.

A vida pessoal de Floria é estabelecida em poucos momentos e com breves comentários. No fundo essa pessoalidade não interessa ao filme e isso é bom. Assim como não há uma radiografia da vida e personalidade de cada paciente que aparece em tela. Essa opção do roteiro agiliza a trama sem nos tirar a capacidade de nos importarmos com cada doente que Floria cuida, e acredite, nos importamos com cada um deles.
E nos importamos com ela. Leonie está incrível com sua atuação contida e que transborda empatia por cada ser humano assistido. A roteirista não esconde que Floria é competente, ética e querida por todos, entretanto, como qualquer um, comete erros. Lentamente a personagem vai da serenidade, passando pela apreensão até o desespero total pela via do silêncio e do olhar. A atitude de alguns pacientes também aquece nossos corações.
O roteiro é magnífico ao dar agilidade à passagem do tempo (a estória abarca um turno que vai da tarde de um dia até a manhã do outro), acompanhando a fluidez no atendimento de cada paciente por Floria, seus encontros nos corredores com os colegas, o celular que não para, o não parar nem para se hidratar ou comer.

A trilha sonora indica uma tensão crescente no turno de Floria, sugerindo um possível caos mais adiante, mas sem exageros. A trilha acerta ao surgir enquanto nossa heroína está nos corredores e nas salas de preparação de medicação, e desaparecendo durante os encontros com os pacientes. Essa opção faz emergir emoção verdadeira com a condição de cada um, sem a necessidade de arrancar lágrimas por meio da música.
É milimétrico o aparecimento de cada paciente na tela, sem cenas desnecessárias. Justamente neste dia, cuja equipe está deficitária acompanhamos a Sra. Kuln vinda de uma casa de repouso, Sr. Leu que aguarda o resultado da oncologia, Sra. Corsatto em sua segunda cirurgia e desacompanhada, o Sr. Severin rico, com plano de saúde, Sra. Bilgin com câncer em fase de metástase, Sra. Morina com sua segunda passagem pelo hospital, o que deixa Floria triste e apreensiva.


Talvez o maior trunfo da mise-èn-scene é criar um ambiente onde não passamos incólumes com as estórias apresentadas. A eminência da morte, os cuidados paliativos, descortinam toda a nossa fragilidade como seres humanos. Somos capazes de imaginar e nos angustiar com a possibilidade de sermos nós naquelas situações.

O filme de forma discreta ainda consegue fazer um pequeno comentário sobre racismo ao vermos a cara de decepção de um casal. O esposo ficará num quarto com um homem de Burkina Faso. Nessa cena é possível deduzir além do racismo, a xenofobia que hoje (mas sempre foi assim) atola a Europa. A ironia da provável xenofobia é que o casal é do Kosovo.
Por outro lado pode ser problemática a leitura possível de se fazer quando os três filhos da Sra. Bilgin se mostram agressivos com Floria, já que a família é turca. A direção de arte entrega um hospital absolutamente limpo, organizado e mesmo com déficit de pessoal, moderno e com os melhores aparelhos e apetrechos. Por mais que isso seja uma obrigação óbvia para um centro hospitalar, fica um gosto de perfeição demais, até mesmo para um país desenvolvido.
O turno tardio (possível título em português) enfim termina, Floria volta pra casa, mas não com a sensação de dever cumprido. Nada mais do que um dia cansativo, extenuante, daqueles que pedem um colo, como mostra a beleza da cena final.
Late Shift é um filme simples e melancólico, que de forma sensível expõe nossa imensa fragilidade diante da vida.
