Crítica | O Castigo (El Castigo) – 2022 (Chile/Argentina) ˜O desmoronamento da maternidade˜
- Pê Dias

- há 13 minutos
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“O que você disse?”
“Eu disse que tem uma parte de mim que preferiria não encontrá-lo”.
Disponível nos cinemas a partir de 11 de dezembro distribu[ido pela Filmes do Estação

Não conhecia o diretor e roteirista chileno Matías Bize e nem nada sobre sua obra premiada no festival de Goya de 2011, A Vida dos Peixes de 2010. A vontade de conhecer os filmes anteriores de diretoras/es que de certa forma me impacta é grande, mas ter acesso aos filmes é outra história, nem sempre com final feliz.
O debate entre os críticos de cinema sobre o uso do plano sequência (seja em algumas cenas ou no filme todo como é o caso aqui) numa obra sempre se renova, com opiniões bastante divergentes entre o uso da técnica para ajudar a contar uma boa estória, imergindo o espectador na narrativa ou apenas uma “amostração” do diretor, uma pirotecnia que não acrescentaria nada à narrativa.
O debate me interessa mas confesso que não saberia diferenciar uma situação da outra. Gosto muito do plano sequência da série Adolescencia (Adolescence, 2025) e do filme Victoria, 2015 do diretor alemão Sebastian Schipper, com o ator Franz Rogowski (pra mim, um querido) e sigo acreditando que nos dois casos o uso da técnica só acrescentou à narrativa.

Já em O Castigo, em menos de uma hora e meia nos sufocamos em uma narrativa inteira em plano sequência, acredito que funciona, mas arriscaria dizer que, a escolha pela fragmentação não faria mal à obra.
Uma criança, Lucas (Santiago Urbino) filho de Ana (Antonia Zegers, O Clube/2015, No/2012; excelente) e Mateo (Néstor Cantillana, No/2012, A Memória da Água/2015) desaparece numa estrada que corta uma floresta, cujo destino é uma visita à mãe de Ana. Aparentemente esse casal esconde alguma coisa e os conflitos começam a emergir.
O filme vai aos poucos explicando o que aconteceu com Lucas, deixado na estrada pela mãe Ana como castigo por sua desobediência. A câmera privilegia o rosto de Ana, de longe a personagem mais interessante da trama, cujas atitudes frias e de uma calma irritante faz com que comecemos a odiá-la. Com o passar das horas e o entardecer chegando, o desespero toma conta da mãe, mas sempre com sutileza, em pequenas ondas. Mateo segue o tempo inteiro desesperado e acaba por chamar a polícia.

Com a chegada da sargenta Carolina Salas (Catalina Saavedra, A Criada/2009) os diálogos, nunca expositivos, narram o que aconteceu, como aconteceu e porque aconteceu. Passamos a conhecer melhor Lucas, mudamos nosso foco para odiar o pai condescendente e o filho que ao que parece, é extremamente desobediente, irresponsável e irritante, mas, talvez neurodivergente. O pequeno papel de Carolina merece atenção. Dura e rígida, mostra segurança no trabalho que desempenha como policial e sagacidade, arrancando aos poucos as informações necessárias para que a busca por Lucas tenha sucesso. Em determinado momento, diante do desespero de Ana, se permite uma certa solidariedade, mas nem tanto.
Enquanto um dos policiais entra na floresta à procura de Lucas e a sargenta tenta fazer com que o casal não atrapalhe na missão, presenciamos os mais cruéis diálogos entre um casal. Ana sempre age como se Lucas estivesse de birra, se escondendo pra puni-los (quem está sendo castigado afinal?). Já Mateo acredita que o filho realmente se perdeu e mesmo concordando com algumas tomadas de decisão da esposa, não se priva de culpá-la por tudo o que acontece, narrando seus feitos “heroicos” com o filho, sua compreensão sem imposição de limites com Lucas, gerando a velha receita de mãe bruxa, pai legal.

Inicialmente disse que se valer de um único plano sequência para esta obra não necessariamente colaboraria em manter a tensão necessária no desenrolar da estória. Tanto a floresta, quanto o tempo curto até o anoitecer, além da possível presença de pumas já imprimem à narrativa angústia e desespero e, a fragmentação de informações sobre o que aconteceu, contribuem muito para tensionar expectativas do que está por vir. Até porque como o uso do plano-sequência indica uma passagem real do tempo, há inconsistências na temporalidade do que sugere o plano e o que é sugerido nos diálogos.
Em alguns momentos da obra, me peguei fazendo algumas comparações com o movimento Dogma 95, criado pelos cineastas Lars Von Trier e Thomas Vintenberg, mas claro, não no contexto proposto por eles, na radicalização de purificar o cinema, contra os excessos cinematográficos pelo mundo (principalmente Hollywood) e com regras rígidas. Mas, através de escolhas que achei muito interessantes: não há trilha sonora, uso de luz natural com total aproveitamento do cenário reduzido, que é a floresta mas, ao mesmo tempo infinita no nosso psiquismo e, por fim, dos movimentos de câmera que bambeiam com os personagens, indicando uma espiral de perda do controle da situação (se é que em algum momento houve controle).
Algumas cenas acredito serem dispensáveis mas, que não alteram o resultado final, como algumas incursões floresta a dentro pelos personagens, ou o fingimento de Ana que, ao telefone com a mãe, passa recado da avó para o filho que não está no banco de trás. Outro incômodo que me atingiu foi a lição de moral sem lógica (alguma lição de moral tem?) de Mateo em relação à Ana ter mentido para a mãe sobre a demora em chegar à sua casa. Ou foi uma escorregada do roteiro ou o personagem de Mateo resvala na babaquice.

Mas, apesar de considerar um bom filme, o que ficará marcado será o seu final, num diálogo absurdo de bom de quase onze minutos onde, toda a aura de bom pai desaba junto com uma noção romantizada de maternidade que castiga, aprisiona e sufoca dignidades. É um descortinamento de frustrações e sonhos destruídos que poucas vezes eu vi em obras audiovisuais. Não sobra pedra sobre pedra diante dos argumentos mais do que reciclados que Mateo utiliza para cimentar o lugar que Ana deve ocupar dentro de uma família nuclear notadamente forjada no patriarcado e seus papéis de gênero.
A roteirista, Coral Cruz (desculpem os homens, mas tinha que ser uma mulher para pensar nesse diálogo final) não se preocupa em estender qualquer situação após essa cena, e não importa tanto. Para isso existe nossa imaginação, construindo cenários possíveis ou impossíveis. O que importa aqui é a coragem do tapa sem dó numa ideia que só nos aprisiona durante séculos e séculos amém.

Curiosidades: a atriz Antonia Zegers foi casada com o diretor Pablo Larraín (meu momento Caras).
Filmado em plano sequência, a tomada final foi a sexta de sete filmadas em dias diferentes de uma mesma semana. Originalmente, as filmagens estavam previstas para 2020, mas foram canceladas devido à pandemia de COVID-19 (https://www.imdb.com/pt/title/tt21905940/trivia/?ref_=tt_dyk_trv) .
O filme é rodado nono Chile, no Bosque Quillin, que após pesquisa no google maps vi se trata de um fragmento de floresta de 60 ha, que no filme é transformado numa floresta um tanto assustadora.
Ficha técnica
Drama, Suspense
86 min.
País: Chile / Argentina.
Direção: MATÍAS BIZE
Roteiro: CORAL CRUZ
Produtoras: CENECA PRODUCCIONES e LEYENDA FILMS
Produção: ADRIÁN SOLAR, ROCÍO GORT e IGNACIO REY
Direção de Arte: SEBASTIÁN OLIVARI
Fotografía: GABRIEL DÍAZ
Montagem: RODRIGO SAQUEL
Elenco
ANTONIA ZEGERS, NÉSTOR CANTILLANA. CATALINA SAAVEDRA, YAIR JURI






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