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Crítica | Jovens Mães: o antimanual sobre filhas que são mães, sem saberem como é ser filhas (Jeunes Mères, 2025 – Bélgica/França)


Filme está na programação da 49° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo 2025 (int'l film festival) e é o indicado da Bélgica a uma vaga ao Oscar de Melhor filme internacional 2026

"Mas ela podia ao menos ligar, é minha mãe não é?- Jessica"

Jovens Mães

Nos nichos mais conservadores, do tipo bonita, recatada e do lar, provavelmente impere um tipo de maternidade totalmente voltada à abnegação das mães enquanto mulheres com desejos e interesses próprios. Soma-se a isso a propalada ideia de que exista um instinto materno no qual toda e qualquer mulher tem um papel a cumprir sem direito a desvios de rota: ser mãe. Custe o que custar.


Entretanto, esse pensamento e práxis se confrontam cada vez mais com outras forma de vivenciar a maternidade, ou mesmo de negá-la como uma verdade absoluta sobre o corpo das mulheres, sejam cis ou trans.


Dentro das maternidades escolhidas, sejam planejadas ou não, também já se sabe que não há manual, e essa falta de regras fixas e norteadoras tanto pode ser libertadora quanto angustiante para qualquer mãe, quiçá de primeira viagem e em pouca idade. Todos os arranjos familiares passam por isso, seja na família patriarcal ou matriarcal, homoafetiva (e incluo aqui casais gays até porque esses homens exercerão a função materna também), mães solo e porque não, pais solo.


Jovens Mães
Alegria de Selma com o trenzinho

Agora imaginem as jovens mães de catorze, quinze ou dezesseis anos que nunca puderam exercer papéis de filha. É dentro desse universo que os irmãos Jean e Luc Dardenne, também roteiristas, apontam sua câmera, num retrato sensível e humanista ― como provavelmente todos os seus filmes, e digo isso porque não assisti todos ― para a rotina de uma instituição belga de acolhimento de jovens mães. Nunca deixo de me surpreender na forma como  os irmãos conseguem nos mergulhar nas estórias sem que façamos juízo de valor sobre as personagens. E se o fazemos no inicio, somos desarmados ao longo da narrativa.


O filme abre com Jessica (Babette Verbeek) ao telefone conversando com alguém e logo em seguida, não sem hesitação, aborda uma mulher que desceu do ônibus perguntando se ela estava esperando uma garota chamada...Jessica. Não, ela não estava esperando.


Jovens Mães
Jessica e Nathalie

A partir dessa cena conheceremos as companheiras de morada de Jessica ― que depois se torna mãe de Alba ― todas já com seus bebês nascidos. Julie (Elsa Houben) e sua bebê Mia, Ariane (Janaina Halloy) e a pequena Lili, Perla (Lucie Laruelle) e seu filho Noé, e Naïma (Samia Hilmi) mãe da Selma.


Jovens Mães
Naïma

A direção dos Dardenne privilegia enquadramentos onde raramente as personagens estão sozinhas, estando quase sempre acompanhadas pelas profissionais da instituição, alguém da família ou entre elas. A câmera usa de planos médios e primeiro plano nos colocando muito próximos das interações entre as personagens e suas reações ao contexto vivido por cada uma. No caso dos primeiros planos é muito comum uso da câmera tremida para dar a sensação de urgência, que não foi o caso aqui.


O roteiro através dos ótimos diálogos mostra que as urgências são todas típicas das adolescências, ainda mais quando estas precisam se transformar em vida adulta o mais rápido possível. Ou no caso de Jessica que, aflita, ainda não conhece a mãe e insiste em saber porque foi abandonada. O mais difícil é que, mesmo que as respostas venham, não serão totalmente satisfatórias. Bem-vindas ao mundo adulto…


A montagem (Marie-Hélène Dozo) constrói um retalho de pequenas estórias entrecortadas que, sem pressa mas, com alguma rapidez, mostra como o passado das garotas as levou até ali e pavimenta os momentos futuros, nas quais escolhas difíceis serão feitas. Nem tudo sobre o passado de cada uma fica claro ou exposto, mas vejo como uma decisão interessante e que move nossa imaginação.


Não descobri nada sobre o elenco mais jovem, elenco que me surpreendeu muito. Não saberia dizer se é o primeiro trabalho de cada uma, mas com certeza o resultado é precioso. A personagem Perla foi a que mais me chamou atenção. A atriz Lucie Laruele com seu olhar expressivo mergulha da indignação e raiva ao triste conformismo em segundos.


Jovens Mães
Perla e Robin

Perla é a expressão do quanto o machismo encontra campo fértil nas nossas mentes, fazendo com que as próprias mulheres o reproduzam: a personagem praticamente implora para que o namorado Robin (Günter Duret) não a deixe, sugerindo que eles morem juntos sem que ele precise assumir Noé. É ela que bate perna pela cidade para encontrar moradia para os três. Perla acredita que família tem que ser os três juntos, não há possibilidade de outros formatos. Ficaremos na torcida para que a maturidade um dia mostre para ela e para tantas jovens nessa situação, que seguirão melhor sem esses companheiros. Jessica também reproduz certo machismo já que em algum momento, chama a mãe de vagabunda.


Julie, mãe da Mia e namorada de Dylan (Jef Jacobs), ambos usuários, lutam contra o vício: ela consegue estágio num salão de beleza, ele emprego na padaria. Poderíamos dizer aqui que ela tem sorte de ter um companheiro legal e até muito fofo, que assumiu Mia e se mostra um rapaz responsável. Mas essa afirmação carregaria em si muito machismo. Naturalizamos tanto a narrativa de que homens são assim mesmo que um cara legal é a oitava maravilha do mundo. Não é, deveria ser apenas o ético. Mulheres não fazem filhos sozinhas, mas os criam milhares de vezes assim, e ainda carregam a culpa, interna ou externa, de serem mães solo por escolha própria (em alguns casos é mesmo). A gravidez vira punição. Punição por ter um corpo de desejos, prazeroso, um corpo que faz sexo.


Jovens Mães
Sororidade

Ariane, filha de Nathalie (Christelle Cornil) e mãe de Lili me pareceu a personagem mais madura das cinco, e por isso mesmo, trazendo no olhar imensa dor. Escolheu fazer um aborto por não desejar ser mãe, escolha abandonada por insistência de Nathalie. Esta ainda sonha com a volta da filha e neta pra casa. Ariane sabe do custo de voltar à casa da mãe, uma mulher que vive um relacionamento violento e abusivo com um homem que bate na mãe e já bateu na filha. Ariane e Nathalie protagonizam o diálogo mais doloroso da obra.


Jovens Mães
Ariane

O filme deixa pistas de como funcionam o sistema de acolhimento destas jovens mães. A instituição recebe essas meninas ainda grávidas e que, após dar a luz, podem ficar até um ano no local. Na residência vão aprendendo os cuidados essenciais e básicos que uma mãe precisa ter com seus filhos mas, o lar não tem a função de cuidar dos bebês, como fica claro no diálogo entre a psicóloga Isabelle (Claire Bodson) e Perla quando esta deixa Nóe por três dias para ir atrás de Robin.


As tarefas também são divididas onde cada uma faz o almoço ou jantar através de um rodízio. Quando saem, elas têm liberdade de ir e vir, precisam levar o celular e algum dinheiro, provavelmente uma ajuda de custo do governo, que por sua vez, financia o aluguel de imóveis para moradia futura dentro de um determinado teto de valor. Quando Julie e Dylan (ele fica em alguma outra instituição) vão trabalhar, Mia fica numa creche na ausência dos pais e não cuidada pelo lar maternal.


Essas meninas que se tornam mães tão cedo, sem estrutura familiar de apoio ou a profunda fratura dessa estrutura, não poderiam estar menos fragilizadas, temerosas com o futuro, revoltadas. A obra aborda uma discussão bastante interessante sobre abandono: quando uma mãe por motivos que vão desde o desejo de não querer filhos até o fato de serem muito pobres pra criá-los, entrega essa criança para uma instituição ou um lar adotivo, isso é abandono? Há várias perspectivas nessa discussão, mas uma coisa é certa: o sentimento de desamparo é enorme.


Dois detalhes me chamaram atenção na narrativa. O pai não assumido de Alba, filha de Jessica é apenas uma voz no telefone e assim como Robin, pai de Noé, que aparece apenas uma vez na trama, desaparece e vira também voz. Outro detalhe: com exceção de Perla, nossas jovens tiveram filhas.


Jovens Mães
Perla, Noé, Lili e Ariane

Uma opção narrativa que me agradou bastante é o fato de que os diretores não colocaram essas meninas numa situação de competição e arredias umas com as outras, como é tão comum em muitos filmes. Garotas brigando por garotos, fazendo bullying umas com as outras. No lar maternal o clima é de companheirismo e cumplicidade entre elas já que, por mais que suas estórias sejam diferentes nos detalhes, são semelhantes na essência.


Arrisco uma observação muito pessoal, que talvez tenha escapado um tanto do não julgamento moral que a filmografia dos Dardenne se propõe. É muito triste ver uma mãe incentivar um filho a não assumir um filho, dentro de uma narrativa cansativa e repetitiva de como a gravidez pode ser um golpe por interesse no dinheiro e estabilidade desse futuro pai ou da família dele...ai que sono.


Jovens mães não traz arroubos emocionais a quem o assiste, mas tem em si pequenas cenas lindíssimas e com um final esperançoso dentro daquilo que é possível para Julie, Perla, Ariane, Jessica e Naïma. Não confundamos esperança com felicidade, mas a oportunidade da construção de futuros com menos sofrimento e saídas realistas. E nisso, programas de Estado (não confundir com Governo) que visam bem estar social fazem toda a diferença.


Jovens Mães
Ariane, Nathalie e Lili

A risada gostosa de Lili para a mãe antes de ser entregue a pais adotivos é de rasgar o coração. O convite a uma professora que marcou Julie por conta de um poema, para ser madrinha do casamento dela com Dylan, regado a tortas e música é de encher o coração.


E é assim, nos rasgando um tantinho e sorrindo de canto de boca que seguimos na torcida para que essas meninas encontrem seu lugar no mundo.



Jovens Mães
Dylan e Julie


Curiosidades: Vencedor do prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes (https://mostra.org/filmes/jovens-maes)

A montadora Marie-Hélène Dozo também trabalhou nos filmes Dois dias, Uma noite (2014) e o Garoto da Bicicleta (2011) (https://www.imdb.com/pt/name/nm0236549/)



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