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Crítica| Sirāt: "Uma rave, um deserto e o mundo virado de ponta-cabeça"

Filme de abertura da 49° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo 2025 (int'l film festival) e indicado da Espanha a uma vaga ao Oscar de Melhor filme internacional 2026

“Vamos seguir vocês. Não temos outra opção”


“Acho muito bonito que vocês a procurem”

“A Mar?”

“Sim”

“Por que ela fugiu?”

“Ela não fugiu. A Mar é adulta, ela foi embora”.


cartaz
cartaz

Diz a lenda que nos festivais por onde passou (ao menos Cannes e Toronto) Sirāt causou rebuliço. A plateia, ou parte dela, deixou as salas de cinema boquiaberta, queixo caído, em negação, angustiada, sensação de descrédito naquilo que acabou de ver. Ou seja, como diria algum meme repousado nas redes sociais, bomba, tiro e porrada.


O diretor espanhol Oliver Laxe disse que esse seu projeto foi o mais político e radical. Não o conhecia e, portanto, sem referências para a comparação (ok, quem sou eu para contradizer o diretor…). Seu projeto anterior, o longa de 2019 O Que Arde (que já está na minha lista para algum dia conseguir assistir) foi bastante elogiado e abocanhou vários prêmios em festivais.


A estória de um pai em busca da filha que desapareceu após uma rave no deserto, acompanhado pelo filho caçula, que se junta a uma trupe de frequentadores desse tipo de festa, cruzando o sul do Marrocos em meio ao que parece uma guerrilha, é “deserto” fértil para inúmeras leituras políticas se considerarmos o estado do mundo hoje, com a extrema direita cada vez mais articulada e um discurso xenofóbico assustadoramente crescente. Afinal, quem precisa de terceira guerra mundial se o mundo hoje é um tabuleiro de xadrez armamentista de difícil compreensão para nós reles mortais.


a festa
a festa

Se eu pudesse dividir o filme em capítulos como algumas obras fazem, sem dúvida seria assim: I – Curiosidade; II – Meus deus, ouvirei música eletrônica por quase duas horas; III – Uma família disruptiva que se forma; IV - … ; V – O que aconteceu? Para onde irei agora?

A obra abre com planos detalhes das mãos sujas e calejadas de trabalhadores montando todo o aparato de som para a festa e, através de planos abertos e gerais passamos a entender a conjuntura da cena, com a curiosidade começando a pulsar, mesmo que saibamos do que se trata a estória.


Logo, a montagem (Cristóbal Férnandez) rápida e certeira junto com uma fotografia (Mauro Herce) belíssima nos coloca em pleno deserto junto a uma pequena multidão (ao que parece formada de pessoas todas brancas, o que já nos diz algo) dançando em plena luz do dia de forma hipnótica. Temos a sensação que para aquelas pessoas nada mais importa para além dali, como mostra a direção mais a frente, em cenas nas quais as notícias de embates militares soam no rádio, mas cuja transmissão não recebe um pingo de atenção dos personagens.


O foco da câmera em alguns personagens em particular no meio da massa dançante, nos apresenta aqueles nas quais a trajetória deverá ser acompanhada pelo espectador. E, ao incluir personagens de quatro patas, Pipa e Lupita, já me ganhou, mas não sem alguma apreensão. Inclusive essas adoráveis personagens foram homenageadas pela Palm Dog em Cannes.


a trupe rave
a trupe rave

Cenário inicial apresentado, conhecemos Luis (Sergi López, Labirinto do Fauno,2016), seu filho Esteban (Bruno Nuñez Arjona) e a cadelinha Pipa que rondam a rave distribuindo um panfleto com a foto da filha e irmã, Mar, que está desaparecida há 5 meses. Mesmo que a maior parte das pessoas se mostrem receptiva com a preocupação e angústia de Luis e Esteban, ninguém viu ou reconheceu Mar.


Quando o exército marroquino chega ao local e acaba a festa com o argumento de que é pela segurança dos “europeus”, e os escoltam para sair do deserto formando uma fila imensa de veículos entre caminhões, trailers e vans, Luis motivado pelo filho, começa a seguir a trupe rebelde que pega um atalho fugindo do exército para ir a uma outra rave que está acontecendo.


Começa então esse "roadie-rave-movie" inusitado, com um pai angustiado e triste em busca de uma filha na qual só conhecemos através de fotos, um filho carismático e fofo, e uma trupe de pessoas que parecem viver de forma minimalista e celebrando a existência através da música e da dança.


Pipa, Luis e Esteban
Pipa, Luis e Esteban

O roteiro de Olivier Laxe em parceria com Santiago Fillol (também parceiros no roteiro de O que Arde) faz uma construção que facilita a nossa identificação com os personagens, mesmo que não entendamos o mundo das raves e não saibamos se Mar, realmente foi embora por conta do pai ou, se aconteceu algo mais grave. Não é necessário sabermos do passado de cada personagens e suas motivações para abraçarmos essa jornada com eles. Sem falar no trabalho incrível de todo o elenco, considerando ainda que alguns deles não são atores profissionais.


Sergi López entrega mais uma vez uma interpretação poderosa na pele desse pai amoroso com o filho, uma tristeza profunda estampada no rosto que contrasta com uma postura corporal ereta e um tanto desafiadora. Mas, que não se furta de suplicar quando precisa, ajuda para encontrar a filha.



pés pra que te quero
pés pra que te quero

Esteban, um garoto de 9 ou 10 anos surpreende com uma interpretação carismática e afetuosa. Funciona como um contraponto ao pai, que mesmo sofrendo com a ausência da irmã, é esperançoso e faz questão de acreditar nas pessoas, como mostra a cena da van na qual viajam, que não tem potência para atravessar um riacho. O garoto é bem mais generoso que o pai, o que indica uma outra face de Luis, tornando o personagem mais complexo.


O núcleo formado pelos “raveiros” Bigui (Richard Bellamy), Stef (Stefania Gadda), Jade (Jade Oukid), Tonin (Tonin Janvier) Josh (Joshua Liam Hederson) e a cadelinha Lupita inicialmente aparecem de forma discreta na obra: não reconhecem Mar na foto apresentada por Luis e ao perceberem que estão sendo seguidos por pai e filho, vão tomar satisfação. No entanto, essa trupe rouba nossos corações, com seus componentes tão diversos, cativantes, alegres e solidários, como se verá num ponto crucial do filme.


O capítulo II que com bastante liberdade criei sobre a música eletrônica…bem, minha apreensão caiu por terra. A combinação da trilha sonora (Kanding Ray) e a fotografia, que faz questão de mostrar toda a beleza do deserto e nossa insignificância, é magnífica. A forma como a trilha sonora é utilizada nos momentos de tensão e de algum alívio, faz com que o espectador mergulhe na trama, sentindo as mesmas coisas que os personagens. A trilha cria um universo na qual o futuro da viagem, um futuro que pode estar bem ali, atrás de um paredão rochoso, seja tão incerto que nossa atenção é conduzida pelo medo.


rally ?
rally ?

O filme flerta com situações que povoam outras obras e poderia soar um tanto clichê, mas a condução da estória foge disso. Aos poucos, com as imagens falando por si, percebemos o encontro de duas famílias se transformando em uma outra, que desafia padrões impostos pela sociedade, tipo, pátria, família e propriedade (e pensar que estamos em 2025…). Diálogos travados entre Esteban e Bigui sobre quem é família, ou entre Stef e Jade em relação à filha de Luis sem qualquer julgamento moral sobre o desaparecimento de Mar, são exemplos de quais valores deveriam transpassar os arranjos familiares.


A divisão de um chocolate, uma aula sobre música pra dançar e não exatamente ouvir, uma cadelinha que usou LSD, um breve teatro de bonecos que enche de maravilha o ser criança de Esteban e dos adultos também, uma manobra arriscada entre o caminhão de Stef e o trailer de Josh que deixa Esteban gargalhando e Luis indignado, situações tão bem construídas que pavimentam todo nosso afeto a essas pessoas.


Entrar nos meus fantasiosos capítulos IV e V estragaria a experiência de assistir essa obra, bastante radical e tão política como bem disse o diretor. Desconsertante e até mesmo cruel. Há muito não me sentia tão paralisada ao final de um filme.


A palavra Sirāt explicada no início do filme, fazendo referência a uma ponte que liga o inferno ao paraíso, segundo a religião muçulmana, pode indicar a travessia dessas pessoas de um polo ao outro. Tenho minhas dúvidas sobre Luis, se ele estava num paraíso e foi ao inferno, ou se, do inferno ele chegou ao paraíso. Acredito que a experimentação seja inferno-inferno.


apenas lindo
apenas lindo

As possíveis reflexões que fiz e ainda faço após assistir ao filme, dão notícias de que as consequências de uma guerra, qualquer uma, são tão terríveis quanto a própria guerra. Terríveis no tempo e espaço, cujos estilhaços podem destruir vidas que nunca imaginaríamos.


É possível pensar também em como algumas pessoas podem se alienar do que acontece no mundo, atravessando países e fronteiras sem se dar conta da realidade geopolítica de cada paisagem visitada, talvez se valendo de alguns privilégios. Como se, ser europeu, branco, fosse garantia de passaporte livre para qualquer lugar e nada de ruim poderia acontecer.


Entretanto, outra forma de observar tudo isso é pensar sobre a possível metáfora sobre a crise de imigração cada vez maior, radicalizada e violenta. Seriam nossos personagens estrangeiros não bem-vindos fora das suas fronteiras de origem? O que lhes aconteceu tem raízes na xenofobia? Na alienação? Ainda não encontro respostas, mas dizem que a indignação pode nos mover.


Ousarei sobre um conceito da psicanálise lacaniana sobre o instante de ver, o tempo de compreender e o momento de concluir. Sirāt para mim teve o instante de ver, o tempo de compreender ainda está confuso e fragmentado e o momento de concluir talvez nem chegue.


Diz a lenda que a terra não gira, capota. Esse filme também.


nossa pequenez
nossa pequenez

Curiosidades: Houve empate no Prêmio do Juri em Cannes, além de Sirat, o filme O Som da Queda (In die Sonne Schauen) de Mascha Schilinsk. (https://www.festival-cannes.com/en/2025/meet-the-78th-festival-de-cannes-winners/)

Além de Sergi López e Bruno Nuñez Arjona (Estéban) o diretor usou atores não profissionais

O filme foi rodado parte do Marrocos, parte na própria Espanha (províncias de Terual e Zaragoza) por questões financeiras. Foi rodado com o uso de Super 16 mm

O diretor Oliver Laxe disse que esse projeto foi o seu mais político e radical.

A produção da obra é dos irmãos Almodóvar (além de outros) (https://www.imdb.com/pt/title/tt32298285/fullcredits/?ref_=tt_cst_sm).

Fiz uma breve pesquisa sobre raves no deserto, algo que nunca tinha ouvido falar antes de assistir Sirāt e me surpreendi como esses eventos são bastante comuns e com formatos bem diversos.

O ator Bruno Nuñez Arjona que faz Esteban está numa série espanhola chamada La Mesías de 2023 e em produção.

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