Crítica | Hard Truths – 2024
- Pê Dias

- 12 de out.
- 4 min de leitura
“Por que se casou com ele?"
"Eu estava com medo. Não queria acabar sozinha.”

Assistir Hard Truths me trouxe um profundo desconforto, daqueles que não sabemos dizer, ao menos por um tempo, se gostamos da obra ou não. Fiz um exercício de imaginação onde me vi alguns anos mais velha, ranzinza, ressentida e reclamona (não que eu não seja um pouco de cada coisa…). Passado um tempo refleti um pouco e percebi que sem ativar uma certa empatia com a personagem, seria impossível acolhê-la ou até mesmo me ver um pouco nela.
O filme transita entre dois núcleos familiares: Pensy (Marienne Jean-Baptiste), seu esposo Curtley (David Webber) e o filho do casal Moses (Tuwaine Barrett). E núcleo da irmã de Pensy, Chantelle (Michele Austin) e suas filhas, Kayla (Ani Nelson) e Aleisha (Sophia Brown).
Através de um trevelling acompanhamos a chegada de um rapaz à casa de Curtley que o espera numa van estacionada na lateral da casa. O sobrado da família de Pensy de fachada branca impecável, localiza-se na esquina de uma rua tranquila típica de um subúrbio de uma cidade grande ou mediana.
Dentro da casa a mesma impecabilidade: poucos móveis, de cores sóbrias e modernos, casa perfeitamente limpa e organizada, um quintal sem nenhum atrativo.
Porém, a sensação de quietude e paz vai logo embora quando Pensy nos é apresentada. A partir daí esta dona de casa de meia idade desfilará uma verborragia quase que inacreditável de reclamações, insultos, rancores, raiva. Ninguém passa incólume pela sua artilharia. O filme de Mike Leigh, apresentado como comédia e drama, talvez quisesse nos causar risos desconfortantes nas cenas em que os diálogos/monólogos ofensivos e odiosos de Pensy, seja com seu marido e filho ou numa fila de supermercado, pipocam na tela. Verdadeiramente não sei se encontrei algo para rir aqui.

Chantelle, irmã de nossa protagonista não poderia ser mais diferente, gerenciando um salão de beleza bem sucedido, clientes fiéis, fofocas, risadas. Não é diferente em sua casa, cuja atmosfera de leveza e alegria permeia a relação entre ela e suas duas filhas adultas Kayla e Aleisha. E como a cereja do bolo, o apartamento de Chantelle é o extremo oposto do sobrado da irmã, com sua varandinha charmosa, vasos com plantas, cadeiras coloridas, tapetes e umas tacinhas de espumante circulando.
Gostei bastante da montagem (Tania Reddin) que traz quadros alternados entre momentos de respiro e alegria com Chantelle e, momentos de profunda apreensão e tristeza quando Pensy surge novamente em cena. Contemplamos uma rua tranquila e sossegada para logo em seguida Pensy desatar em reclamações e impropérios contra Moses, seu filho adulto e desempregado. Este, raramente sai do seu quarto e usa seus enormes fones de ouvido como barreira à verborragia da mãe. Caímos de paraquedas no salão da irmã com toda sua alegria e bom humor para logo em seguida a vermos tentando fazer, a duras penas, um penteado na irmã que reclama de absolutamente tudo que está à sua volta ou mesmo daquilo que não está no seu campo de visão.
E assim as cenas vão se alternando, contudo, à medida que a narrativa avança, Pensy vai saindo de um estado de ódio profundo e mergulhando na mais pura melancolia. E no que poderíamos chamar de ápice da narrativa, esses dois mundos completamente opostos se encontram no apartamento de Chantelle, emoldurando um completo desconforto e desespero dos personagens.


Pensy não é de forma alguma uma pessoa fácil. Seu esposo nem fala mais, perambula pela vida com o semblante de quem não tem respostas para o que acontece na sua casa, talvez nem saiba quais as perguntas. Moses, mesmo na presença das primas e da tia e na ausência da mãe não se alegra, não respira livremente. Há um diálogo tocante entre as irmãs na qual percebemos que Chantelle quer e precisa ajudar, mas não há como, não há abertura.

Marianne Jean-Baptiste em mais uma parceria com Mike Leigh está esplendorosa no papel com sua metralhadora giratória de ressentimentos. E aqui volto para o meu completo desconforto com a personagem: é um filme pessimista que não dá abertura para uma possível transformação da personagem. Com isso não quero sugerir finais felizes, transformações catárticas mas, que a partir da autopercepção de Pensy após um diálogo com a irmã, ela possa olhar pela fresta da porta.
Não sabemos como Pensy chegou até aqui e não temos pistas (talvez eu não tenha visto) para que possamos entendê-la, acolhê-la ou até mesmo nos identificarmos em algum nível. A vida é simplesmente insuportável para essa mulher que carregara todas as dores, fobias e lutos nas costas. É difícil até elaborar uma pergunta sobre o que aconteceu com essa mulher, o que acontece e o que acontecerá. Seu mal-estar se espalha e gruda em qualquer um que compartilhe o mesmo espaço.
Aprendi que o cinema nos coloca na pele do outro, dentro de um mundo seja interno ou externo que provavelmente nunca experimentaremos, que empatia é um exercício importante pra lidar com a vida. Não consegui esse feito com a personagem de Pensy.

Mike Leigh nos coloca num labirinto sem saída, onde pequenas cenas que poderiam mostrar uma evolução na personagem acabam em nada. As cenas onde Peny despeja insatisfação e ódio em público (estacionamento, loja), as achei um tanto exageradas, como se precisássemos daquilo pra nos convencer que a personagem é insuportável. A sensação ao final do filme foi de que o diretor pretendia fazer um estudo de personagem limítrofe, explorando o talento de Marianne, que não é pouco coisa, e que o roteiro era apenas um mero pano de fundo para a história. O que não significa que tenha sido uma boa e curiosa experiência assisti-lo.

Curiosidades: Mike Leigh em seu meio século de carreira já foi sete vezes indicados ao Oscar, tem uma Palma de Ouro em Cannes (Segredos e Mentiras, 1996) e um Leão de Ouro em Veneza (Vera Drake, 2004)
Marianne Jean-Baptiste por Hard Truths foi indicada ao BAFTA 2025 e ganhou o British Independent Film Award também em 2025.






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