top of page

Crítica| Luz Luz Luz (Valoa Valoa Valoa) - 2023 (Finlândia)

Queridos ouvintes, se vocês têm medo de (a) amor, (b) explosões nucleares, vocês já podem desligar seus receptores e me deixarem”


Disponível na Filmicca


Créditos divulgação
cartaz

Foi uma grata surpresa após assistir ao filme constatar que as mulheres fazem a festa aqui: direção, roteiro, montagem, direção de fotografia, além da dupla de personagens femininas adolescentes, em seus primeiros trabalhos, se saindo super bem.


Mariia (Laura Birn), lá pelos seus trinta e tantos anos, beirando os quarenta, chega à casa de sua mãe (Pirjo Lonka) após uma viagem cansativa, não tanto pelo aspecto físico, mas emocional. Percebe-se logo que há um muro entre as duas, muito comum entre mães e filhas, algo que as separa pelos não ditos durante toda uma vida. Afinal, o que poderia doer mais: verdades ditas em momentos não tão propícios ou o silêncio avassalador das relações que já se esvaíram? Atire o primeiro rolo de filme quem nunca…


A cena acima descrita não abre o filme, mas é aquela que traz a primeira ruptura na obra indicando que essa estória será contada em flashfarward, numa construção muito bonita sobre os caminhos que levaram àquela Mariia adulta que nos é apresentada. Quando falo sobre uma construção bonita, é tanto emocionalmente quanto visualmente e, tecnicamente, a obra me fascinou, não de forma arrebatadora, mas de forma intimista, daqueles filmes que desorganizam sótão e porão dentro da gente.


A estória se passa praticamente em 1986, ano do acidente de Chernobyl, numa vila da Finlândia, nunca nomeada, e assistimos Mariia adolescente (Rebekka Baer) narrar para um gravador uma pequena fábula reflexiva sobre a cadeia de acontecimentos que levaram ao acidente e as consequências da chegada nuvem radioativa ao país.


Créditos Divulgação
a praia

Mariia transita entre a convivência com sua família nuclear “normal”, vida escolar ordinária, namoro sem graça e seus passeios de bicicleta, até conhecer a nova aluna do colégio, recém chegada à vila, Mimi (Anni Likkanen). Após uma aproximação meio sem graça e sem jeito elas se envolvem romanticamente. Entretanto, aquilo que pode parecer mais um romance-lésbico-adolescente-clichê se mostra mais como uma investigação sobre os percalços dessa fase da vida, apresentada de forma poético, melancólica e de belíssima fotografia.


A diretora Inari Niemi (Wonderland, 2017) opta corajosamente por uma narrativa metafórica onde as simbologias referentes ao horror de um acidente nuclear, também simbolizam as belezas de um amor adolescente; ambos são explosivos.


A melancolia atravessa toda a obra e a direção de fotografia (Sari Aaltonen) se aproveita muito bem das paisagens frias do país escandinavo, contrastando com momentos em que as cores azul e rosa são utilizadas para representar a tragédia nuclear, mas também, a alegria do encontro entre Mariia e Mimi.


Créditos Divulgação
Mariia e Mimi

E por falar em cores, os efeitos visuais (Lauri Ritari) nos enchem os olhos, construindo momentos sensoriais onde acompanhamos as brincadeiras entre as duas. Essas brincadeiras vão desde danças à beira de um lago (que curiosamente chamam de praia) até as simulações que elas fazem sobre os protocolos de ação/reação, caso elas estivessem no centro da tragédia. Esses momentos nos remetem a algo incógnito, que seria o trauma coletivo resultante de um acidente nuclear e como ele atravessaria a fantasia das pessoas.


O desenho de som e a trilha sonora são um encanto à parte. Optou-se por circundar a obra com músicas eletrônicas da década de 1980 e só quem viveu essa época entende o que estou dizendo. As músicas contrastam com a melancolia que emoldura o filme, trazendo uma sensação quente de que tudo pode dar certo pra essas meninas.


Créditos Divulgação
Mimi

Chama atenção também a música incidental que é mergulhada em sons de explosões e alarmes típicos de acidentes em curso, justamente nos momentos em que as duas estão vivenciando seu amor pela floresta em total liberdade, longe das famílias e da sociedade, vivendo um amor praticamente escondido, se considerarmos a época em que se passa o filme.


O roteiro (Juuli Niemi e Vilja -Tuulia Huotarinen) não se ocupa de diálogos longos e nem expositivos. Ao contrário, até pelo que já conhecemos do cinema norte europeu, as falas podem nos parecer às vezes muito sem sentido, secas ou resumidas demais. Como no momento em que Mimi cobra de Mariia uma explicação e essa vem justificada pela radioatividade que estava no suco que a tia desta lhe deu. Também não há excessos na estória, cada passagem tem seu caminho preciso, os personagens secundários têm seu tempo e importância. Alguns até somem e isso pode trazer um certo incômodo, o que não foi o meu caso.


Em breves cenas e diálogos percebemos a diferença social entre as duas. A direção de arte foi imprescindível para isso. A casa de Mariia indica uma posição social mais confortável, mas longe da riqueza que imaginamos ser um dos triunfos de um país escandinavo. Já a casa provisória de Mimi demostra as condições na qual ela vive, uma casa destruída e sem encanto, assim como a família de Mimi.



Créditos Divulgação
Fantasia

A chegada de Mimi à vila poderia nos remeter à forasteira valentona e rebelde tão típica desses filmes. Ao contrário, o roteiro privilegia uma personagem afetuosa e de extrema vulnerabilidade. Daquelas que queremos levar pra casa e cuidar. Mariia apesar de trazer o peso da doença da mãe, é dotada de uma curiosidade silenciosa pela vida e demonstra não ter medo de se arriscar. Entretanto, quando a personagem reaparece mais velha, sentimos que os não ditos, os nós não desfeitos, relevam feridas abertas que teimam em não cicatrizar.


A montagem (Hanna Kuirinlahti) é responsável por essa narrativa tão fluida e emocional. A costura feita entre os acontecimentos nos anos 80 e o avanço 20 anos depois é muito bem realizada. Cria-se um quebra-cabeça interessante, ritmado, sem pressa. As peças vão se encaixando de uma forma que temos elementos para entender o vácuo de anos na vida de Mariia, nos importando tanto com ela quanto a Mimi e, entender o que as move.


Para além dos aspectos técnicos do filme que nos convida a uma experiência sensorial para longe do racional, a performance das três atrizes que compõe Mariia e Mimi é o que arremata a estória, com uma mistura de talento e possivelmente uma ótima direção de atrizes por parte de Inari, já que Rebekka e Anni estão em início de carreira.



Créditos Divulgação
Mariia

Temos uma estória de amor, porém o marcador mais importante que transmite toda a melancolia do filme é a trágica situação de uma adolescente profundamente abandonada por uma família desestruturada. Órfã de mãe, um pai covarde, uma tia que a suporta, tios que assistem pornografia o tempo todo (um deles capaz de praticar abuso) e uma avó que a acolhe, mas que também já não pode fazer muita coisa. Acredito que este seja o pano de fundo da narrativa, aquele que nos alerta sobre a fragilidade dessa época da vida e como ela nos marca de alguma forma para sempre. O real, e é isso que diferencia este filme de outros do gênero, é que o amor romântico, a paixão juvenil, não são capazes sozinhos de salvar vidas já destruídas por inúmeras negligências. E que a família colocada como o centro de tudo como referencial intocável, é uma grande mentira.


Mariia após anos e anos de silêncio e culpa, finalmente encontra alívio, numa cena lindamente alinhavada com outra sobre confrontos necessários. Ouvimos o som do gravador a ser ligado e uma última narrativa, agora de Mariia adulta. Um belo travelling leva nossas queridas adolescentes a mais um passeio para tomar banho na praia. Chernobyl se tornou uma cidade fantasma, mas há gente morando lá. Elas querem viver apesar de tudo, irradiando luz, luz e luz.


Créditos Divulgação
a beleza dos encontros

Curiosidades: A estória do filme se passa na Finlândia mas foi realizado totalmente na Estônia.

Uma das roteiristas do filme, Juuli Niemi é irmã da diretora.

Minha total ignorância na língua finlandesa ou sueca não me permitiu aprofundar em algumas pesquisas: o roteiro do filme pode ter sido baseado no romance ou no conto da escritora Vilja – Tuulia Huotarinen, que também é roteirista junto com a Juuli.

O produto denominado snus que aparece sugerido no filme é um tipo de tabaco sem fumaça escandinavo, usado principalmente na Suécia. Trata-se de tabaco em pó envolto em pequenas bolsas, umedecido, para absorção oral. O produto tem sua origem no rapé tradicional, mas não deve ser confundido com esse, pois o rapé destina-se a ser aspirado.

As duas línguas principais da Finlândia são o finlandês e o sueco, este último, na qual Mariia tenta ensinar à Mini, é falado por uma minoria no país, especialmente as populações da costa.



Comentários


©2023 por Lagoa Nerd. 

bottom of page