Em Carne Viva I Incômoda, Imperfeita, e Fascinante
- Pablo Escobar
- há 12 horas
- 3 min de leitura
Em Carne Viva marca um ponto de inflexão na filmografia da cineasta neozelandesa Jane Campion, mais conhecida por obras densas e intimistas como O Piano (1993), Ataque dos Cães (2021)

Neste thriller erótico lançado em 2003, Campion mergulha nos recantos mais sombrios do desejo e da violência urbana, explorando os limites entre a vulnerabilidade e a busca pelo prazer, em uma obra que polarizou crítica e público desde sua estreia.
A história gira em torno de Frannie Avery (Meg Ryan), uma professora e escritora que se envolve com o detetive Malloy (Mark Ruffalo), enquanto investiga uma série de assassinatos brutais em Nova York. A trama, baseada no romance homônimo de Susanna Moore (que também coescreveu o roteiro com Campion), mistura elementos do noir com o erotismo explícito, quebrando estereótipos do gênero ao adotar uma perspectiva feminina — tanto narrativa quanto visual.
O grande mérito da narrativa está na construção psicológica da protagonista: Frannie é ao mesmo tempo passiva e inquisitiva, deslocada em uma cidade crua e perigosa. Sua jornada não é apenas a de uma mulher em meio a um mistério policial, mas de alguém que tenta entender sua própria sexualidade, medos e desejos. A atmosfera é sufocante, e o erotismo é tratado de maneira crua, por vezes desconfortável, subvertendo o glamour típico de thrillers eróticos tradicionais.

No entanto, essa abordagem tem seus problemas. O ritmo irregular e o foco mais interno que externo no desenvolvimento da trama criminal podem afastar o espectador que espera um suspense mais convencional. A revelação final do assassino carece de impacto, parecendo quase um detalhe diante da jornada emocional de Frannie.
Quando lançado, o filme dividiu profundamente a crítica. Muitos elogiaram a ousadia de Campion e o risco assumido por Ryan ao se afastar de seu arquétipo. Outros, no entanto, acusaram o filme de ser excessivamente sombrio e lento, com uma trama policial rasa. A crítica também se dividiu sobre o conteúdo sexual: enquanto alguns viram como um exercício feminista de agência sexual, outros o classificaram como gratuito.

O público não respondeu bem: o filme fracassou nas bilheterias e recebeu críticas mistas no circuito comercial. Parte do público não estava preparado para ver Ryan em um papel tão cru e sexualizado, o que gerou estranhamento e rejeição.
Em Carne Viva dialoga diretamente com thrillers eróticos como Atração Fatal (1987) e Instinto Selvagem (1992), mas subverte suas convenções ao colocar uma mulher no controle da lente e da narrativa. Também ecoa o trabalho de cineastas como David Lynch (Veludo Azul) na construção de um submundo urbano onde o erotismo e a violência se entrelaçam.
Do ponto de vista estilístico, há ecos de O Inquilino (1976), de Polanski, e da literatura noir feminista de autoras como Patricia Highsmith — obras que exploram a paranoia urbana e a identidade sexual sob perspectiva feminina.
Embora inicialmente mal recebido, Em Carne Viva tem sido objeto de reavaliação crítica nas últimas décadas. Hoje, é visto por muitos como uma obra ousada e à frente de seu tempo, especialmente por sua abordagem do erotismo sob um olhar feminino. No contexto da carreira de Campion, é um trabalho de transição: menos celebrado que O Piano, mas fundamental para entender sua constante experimentação com gênero, identidade e poder.

O filme pavimentou o caminho para obras que, anos depois, trataram temas semelhantes com maior aceitação — vide Garota Exemplar (2014), de David Fincher, ou The Night House (2020), que também exploram a psique feminina sob a ótica do suspense.
Uma obra incômoda, imperfeita e, talvez por isso mesmo, fascinante. Ao inverter as regras do jogo do thriller erótico e trazer uma lente feminina para o centro da ação, Jane Campion desafia o espectador a enxergar o desejo e a violência não como opostos, mas como forças que, muitas vezes, se confundem.
É um filme que, embora tenha sido rejeitado por muitos em seu tempo, encontrou novo fôlego como peça importante na filmografia de uma diretora que nunca teve medo de arriscar.
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