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CRITICA| A NATUREZA DAS COISAS INVISÍVEIS (BRASIL/CHILE,2025) "O ACOLHIMENTO DOS AFETOS"

Visto durante a 12ª Mostra de Cinema de São Miguel do Gostoso

Disponível nos cinemas


A Natureza das Coisas Invisíveis
cartaz

Nas minhas críticas não uso ranking de notas para os filmes e no decorrer do texto alterno sobre as ideias que gostei assim como a sua execução e aquilo que não gostei. Talvez inadvertidamente eu deixe para o leitor concluir se tal obra foi do meu agrado ou não, incluindo aí muitas matizes. Sem generalizações, a subjetividade é algo que incomoda as pessoas pela liberdade que proporciona e também pelo exercício de criatividade. Digo isso pela quantidade de vídeos existentes nas redes sociais sobre “o final do filme/serie explicado”. É uma verdadeira febre. Não negarei que já consultei algumas vezes…


Posta essa introdução afirmo que A Natureza das Coisas Invisíveis é uma graça de filme, que vai crescendo dia a dia no meu corpo toda vez que o recordo. Vai na mesma batida da propaganda boca a boca que a obra causou desde que foi exibido pelos festivais.


Deparei-me com o filme pela primeira vez através da cobertura da Berninale 2025 feita dia a dia pelo crítico Pablo Vilaça

e fiquei bem curiosa com a temática. E bem feliz de saber que ele foi selecionado para a 12ª Mostra de Cinema do Gostoso, sendo o filme de abertura do festival.


E aqui preciso fazer um breve comentário: pelas condições de pressão, temperatura, relaxamento e encantamento que a mostra de Gostoso proporciona, eu dormi em algumas partes do filme, até porque, a cerimônia de abertura do festival atrasou e o filme começou tarde. Mas, uma semana depois, com o lançamento no circuito nacional eu o revi na Sala do Museu da Fundação Joaquim Nabuco em Recife, e a experiência foi bem melhor e sem cochilos.


A Natureza das Coisas Invisíveis
Glória

Na estória, Glória (Laura Brandão), uma menina de uns 10 anos, na véspera das suas férias escolares e em parte delas, é obrigada a passar praticamente os dias no trabalho de sua mãe Antônia (Larissa Mauro, O Espaço Infinito/2023,O Vazio de Domingo a Tarde/2024, ) que, como as milhares de mães solo, não tem onde e nem com quem deixar sua filha.


O detalhe que faz toda a diferença na estória é o local de trabalho de Antônia ― um hospital público que evidencia a sua profissão, enfermagem. Por lá, Glória é querida pelos pacientes, os visita em seus leitos, brinca no depósito de coisas pessoais e tem até onde dormir. Confesso que num primeiro momento achei um tanto imaginativo demais essa criança circular de forma livre num ambiente hospitalar, a suspensão da descrença foi por espaço. No entanto, me lembrei do título maravilho da obra e resolvi abraçá-la.


Nesse ambiente hospitalar, Glória conhece a garota Sofia (Serena) e sua bisa Francisca (Maria Marta Maia, Carvão/2022, Pedágio/2023; em mais um trabalho incrível) que dá entrada na emergência após uma queda dentro de casa, levada pela bisneta que pediu socorro. Um tempo depois, entra em cena Simone (Camila Márdila, Que Horas Ela Volta/2015, Carvão/2022, Ainda Estou Aqui/2024) mãe solo de Sofia, que tem como apoio para criação da filha a avó, que praticamente a criou, e agora, provavelmente não contará mais com essa ajuda.


A Natureza das Coisas Invisíveis
A bisa, Sofia e Glória

O filme faz uma ruptura entre o urbano e o rural. No urbano, a concretude de situações cujas opções de saída para os problemas enfrentados não estão no horizonte. Nesse cenário degustamos dos diálogos entre Glória e Sofia sobre a morte enquanto elas brincam pelos corredores do hospital e visitam a bisa. Os diálogos são um deleite à parte, uma mistura de humor e certa melancolia, que evidencia que é possível conversar sobre quase tudo com as crianças, cujas personalidades ainda não impregnadas de tabus, preconceitos e visões reducionistas como a dos adultos.


Quase na metade da obra a estória parte para o meio rural, o sítio da bisa, que está abandonado e lá a concretude se transforma no onírico, na presença das coisas invisíveis, os rituais de reza, a contemplação dos dias que passam.


Essa divisão de cenários é proporcionada tanto pela conexão entre Glória e Sofia quanto pelas suas mães; Antônia, cansada, solitária, no modo “vida que segue” e, Simone, desesperada, angustiada e com uma péssima relação com a filha. Camila Márdila, apesar de ter a visto em apenas três filmes, contando com esse, é uma atriz que me interessa cada vez mais, e se seu nome estiver nos créditos, moverei montanhas para assistir.


A conexão entre essas mulheres demora um pouco mais para acontecer, a priori sentimos que Antônia julga a forma como Simone lida com o caos que está sua vida, permitindo que uma criança fique sozinha em casa com uma bisavó. Um dos momentos cômicos do filme é quando Simone não encontra muito apoio de Antônia sobre a dificuldade de criar Sofia sozinha e, Glória grita que a mãe está acabando com suas férias deixando-a ali. O sorriso que Simone diante da situação estampa na cara é genial.


Estabelecida de forma sutil mas, de uma profundidade tocante, a sororidade entre as personagens, viajamos com elas para o sítio, onde com um trabalho incrível da diretora Rafaela Camelo, também roteirista, com não atrizes, leva o filme para outro patamar.


O trabalho de direção de arte (Sara Noda) tem sua força na simplicidade, tanto na cenografia do hospital, realista e discreta, quanto no sítio. A cena onde as vizinhas e conhecidas da bisa começam a tirar o pó dos móveis, retirar lençóis que indicam que a casa está fechada a bastante tempo, fazer a cozinha funcionar novamente é de uma beleza notável, que sugere novos começos.


A câmera encontra uma forma muito criativa de descortinar esse espaço: percorremos o sítio junto com Glória e Sofia que correm e brincam encantadas com local, ao mesmo tempo que os adultos arrumam a casa. Um trabalho sensível da diretora de fotografia Francisca Saez Arguto que junto à montagem de Marina Kosa (Que Horas ela Volta/2025, Como Nossos Pais/2017) nos conecta afetuosamente às personagens e ao próprio sitio.


A Natureza das Coisas Invisíveis
No sítio

O roteiro não abre mão do humor em cenas deliciosas como os diálogos das meninas no hospital, citado anteriormente, mas também a ida de Glória e Sofia à vendinha da comunidade comprar fiado mantimentos e, nos diálogos entre a bisa Francisca e uma vizinha que trocam farpas e implicâncias mútuas.


É nessa segunda parte da obra que mantemos nosso sensorial ativo, a percepção de sutis mundos invisíveis que direcionarão os modos como as personagens vão lidar com as perdas e a finitude da vida. Abraçar a possibilidade da morte com banhos de piscina, o correr entre árvores e terra. Os gritos de alegria não explicadas ao vento. O diálogo emocionado que prova que o amor e o cuidado estavam escondidos na concretude da cidade, mas que se torna visível entre o invisível.


O acolhimento muitas vezes vem de onde menos esperamos: mulheres idosas rezadeiras que provavelmente não viveram na cidade com suas redes sociais e sistema de informação que não julgam e nem questionam as escolhas feitas por Simone ou Sofia. Para as rezadeiras é importante também o ritual de morte de uma determinada identidade de gênero, numa cena para mim, das mais bonitas da obra e que mostra toda sutileza do trabalho de atuação da Camila Márdila. E da própria Serena que junto com a Laura Brandão, prometem.


A Natureza das Coisas Invisíveis
Sofia

Não consigo terminar esse texto sem afirmar minha alegria de perceber que se trata de uma obra quase toda feita por mulheres: direção, roteiro, arte, fotografia e montagem. Mais um grande momento do nosso cinema. Vida longa à Rafaela Camelo e essas mulheres.


Daqueles filmes que ao vir à mente, esboça pequenos sorrisos e conforto pra gente seguir com a vida.


A Natureza das Coisas Invisíveis
Quarteto de sucesso

Curiosidades: foi o primeiro trabalho em longas da diretora Rafaela Camelo. Em debate realizado na 12ª Mostra de Cinema de São Miguel do Gostoso a diretora emocionou a plateia ao contar como aos poucos seus pais foram dando conta do feito da filha (https://www.lagoanerd.com.br/post/12-mostra-cinema-sao-miguel-gostoso-relato-parte-i).

Pelos festivais nacionais e internacionais o filme teve 7 vitórias e 4 indicações (https://www.imdb.com/pt/title/tt35051106/awards/?ref_=tt_awd). E atualizo essa lista acrescentando o prêmio de Melhor Longa-Metragem do Juri da Imprensa do 12º Mostra de Cinema de São Miguel do Gostoso (https://www.lagoanerd.com.br/post/12-mostra-cinema-sao-miguel-gostoso-relato-filmes).

Sugiro uma visitinha no site da diretora de fotografia a chilena Francisca Saez Arguto. O espaço traz um breve portifólio de suas produções além de fotografias que achei belíssimas (https://www.franciscasaezagurto.com/).

Deu uma pesquisada sobre os trabalhos anteriores da Rafaela Camelo e achei o curta de 2011 A Arte de Andar Pelas Ruas de Brasília que está disponível no you tube (https://www.youtube.com/watch?v=oor5rwYUQSM&t=66s). Trata-se de um recorte sobre sexualidades que se constroem na adolescência. No curta temos a presença do ator João Antônio que fez em A Natureza Invisível das Coisas o papel do militar internado no hospital, contador de estórias.






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