Crítica| Hot Milk -2025 (Austrália/Grécia/Reino Unido)
- Pê Dias
- há 2 dias
- 5 min de leitura
“ Você é um monstro Sofie ”
Disponível na Mubi

O filme Ida (2013) de Pawel Pawlikowski com roteiro de Rebecca Lenkiewicz me impactou bastante, tanto pela sua estória como pela belíssima fotografia em preto-e-branco. A jovem do título está prestes a abraçar a vida religiosa através do seus votos (pobreza, castidade e obediência) mas, antes disso acontecer, protagoniza um tipo inusitado de road movie, saindo pelo mundo com sua única parente viva, a tia Wanda, que bebe, fuma e transa. Ida trafega de maneira corajosa tanto para expandir seu olhar para vivências profundamente diferentes da sua pela via do estranhamento, como para enfrentar verdades familiares nunca expostas, em função dos traumas vividos na 2° Guerra Mundial.
Não é possível comparar as trajetórias de Ida e Sofia, protagonista de Hot Milk, direção de Rebecca Lenkiewicz, roteirista de Ida mas, ouso afirmar que desta vez, as personagens femininas não foram desenvolvidas de forma corajosa, qualidade muito comum nos roteiros da diretora. A trama me soou circular, proporcionada por um roteiro (Rebecca e da escritora Debora Levy) que não se resolve entre o real e o etéreo, cujos simbolismos por mais que sejam interessantes, bastam por si só e não deveriam.
A estória nos conta sobre Sofia (Emma Mackey, Sex Education), Rose (Fiona Shaw, Colette; Fleabag) e Ingrid (Vicky Krieps, Trama Fantasma; Corsage), apresentadas como mulheres com muitas limitações: Rose e sua paralisia física e emocional; Sofia e sua vida à sombra das demandas da mãe e por fim, Ingrid, que carrega uma culpa que a atravessa desde a infância.

A estória é simples, mas nem por isso menos interessante, a depender da forma como é contada: numa praia paradisíaca na cidade de Almería, sul da Espanha, mãe e filha habitam o lugar por um tempo para que Rose faça um tratamento alternativo com o Dr. Gomez (Vicente Perez). Desse ponto de partida observamos a dinâmica entre Rose e Sofia e, desta com um provável amor, Ingrid.

Rose domina a cena quando aparece, mutante entre vítima (quase infantil) e carrasco (dominadora e manipulativa). Sofia resignada, com raros enfrentamentos (e quando acontece são tão infantis quanto às vitimizações da mãe) trazendo no semblante tristeza e insatisfação. Não há fricção, desafio ou revolta. O calor do local parece sufocar qualquer centelha de mudança, o roteiro não aproveita o verão e o mormaço para desconstruir a relação mãe-filha ou investigar sexualidades pulsantes. O leite quente do título permanece morno.
O roteiro por vezes, realiza apenas um en passant em alguns acontecimentos que viram meras cenas sem desenvolvimento: sugestão de um encontro sexual de Sofia, que a esta altura respira frustração e tédio, com o salva vidas ou o início de uma intimidade com a filha do Dr. Gomez, Julieta (Patsy Ferran). Outro exemplo é o encontro entre Sofia e a família do seu pai Christos (Vangelis Mourikis), que não traz nada de relevante à estória de Sofia, e nem serve de agente de uma possível mudança para a relação dela com a mãe.

O núcleo “trama da clínica de tratamento alternativo” também não nos leva muito longe, repetindo o impasse entre doença física ou sintomática sem explorar o que há de mais ambíguo em Rose, que é justamente essa “deficiência”. Afinal, dr. Gomez é um médico ou terapeuta, ou fica ao sabor do cliente? As conversas entre ele e Rose, seja na presença da filha ou não, não empolgam tanto.
As duas cenas finais do filme, sendo uma delas com a óbvia intenção de ser catártica, ao meu ver impactam muito mais pelo choque de como surgem na tela, do que pelas pistas deixadas por uma boa construção do roteiro.

A montagem (Mark Tows) propicia mais fragmentação do que fluidez, revelando pressa em desenrolar os vários acontecimentos que nunca se aprofundam, trazendo inclusive arcos temporais estranhos, como a visita de Sofia ao pai: num momento ela está na Espanha, no outro, na Grécia.
A montagem também não ajuda a entender por que Sofia que está sempre atendendo as demandas da mãe (parece que a maior delas é trazer um copo de água) desaparece inúmeras vezes e parece ficar uma noite toda fora e não há conflitos sobre isso. Isso parece quebrar toda uma aflição em torno de uma mãe carente em vários sentidos e revelando uma facilitação do roteiro.
A aparição de Vicky num cavalo branco, motivo de problematização por parte de muitos textos, me causou uma sensação curiosa sobre quem seria essa mulher: seria uma salvadora? Surge para embaralhar a vida de Sofia e adicionar camadas de frustração? Talvez a minha expectativa tenha sido alta demais. O desenrolar afetivo-sexual da vida de Sofia parece não sair do lugar sem espaço para desafiar a personagem, apesar de todo o potencial para isso.
A misteriosa Vicky, pró-ativa e livre sexualmente, prometia ser a figura responsável por esse desafiar, esse embaralhar de desejos e demandas. Mas não foi nada disso. Após uma confissão inusitada à Sofia, nos deparamos com uma estória clichê de culpa, e, a partir daí, os diálogos entre Sofia e Vicky tornam-se muito sofríveis.

Hot Milk foi pra mim daqueles filmes que quanto mais eu penso nele, menos gosto, porém, numa lógica de morde e assopra, não achei ruim assisti-lo. Sua fotografia nas cenas noturnas é bastante eficiente e belas, captando até mais o calor daquele litoral do que as cenas diurnas. O simbolismo discreto da queimadura de uma água-viva e a tatuagem funciona como indicativo das nossas feridas internas e de como podemos lidar com elas.
É um filme bonito de se ver, contendo dentro dele muitas ideias interessantes e personagens com potencial para transcender os caminhos traçados pelo roteiro. Há na obra resquícios de uma diretora e roteirista afiada, como está comprovado em trabalhos anteriores. Como um exercício político, acredito ser importante ver e apoiar filmes dirigido por mulheres, ainda mais com um trio principal feminino desta qualidade e suas estórias tão singulares. Talvez uma minisérie fizesse de Hot Milk um trabalho mais corajoso e criativo.
Como saldo final fica a sensação de que aquele leite que está fervendo sobe, mas não transborda.
Comentários